segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

UM CONTO DE NATAL

Márcio José Rodrigues




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                            Pelas ruas da velha Laguna costumava circular um velho e franzino senhor de aparência muito pobre, um jeito de respirar dificultoso. Expressão de cansaço num olhar triste, que comovia as pessoas.
                            Na véspera do natal, lembrei-me dele, tão só, tão frágil, tão Cristo.
                            Foram esses sentimentos aliados ao espírito natalino a contagiar a todas as pessoas, que me provocaram a resolução de dar-lhe um presente.
                            Em todos os lugares só se ouvia música natalina, enfeites coloridos, festões e guirlandas, a figura do Papai Noel dominando todas as decorações de ruas e vitrines das lojas. Os meios de comunicação haviam intensificado o apelo às compras. O mundo era um lugar onde ninguém deveria ficar sem dar ou receber presentes.
                            Dirigi-me a um supermercado, pressupondo as necessidades básicas do meu escolhido e com alguma ansiedade, comecei a encher um carrinho, dos maiores, com coisas que julgava serem práticas e oportunas. Primeiro, os pacotes de 5 kg de farinha de mandioca, arroz e açúcar, depois outros menores de macarrão, feijão, sal, leite em pó, óleo de cozinha, biscoitos, panetone, marmelada, margarina, doce de leite, pão, café, pêssegos em calda, latas de sardinhas, dois ou três sabonetes, um litro de groselha e finalmente, uma galinha congelada.
                            Tudo quase que enchia o espaçoso porta-malas do meu automóvel.
                            Estava ansioso para ver a cara de espanto e a alegria de “seu”, digamos, Matias, já antevendo a surpresa e a emoção com que eu seria recebido.
                            No lugarejo em que morava não foi difícil localizar sua casa, tão conhecido era o homenzinho.
                            Mas, a imensa surpresa seria a minha!
                            Seu Matias morava em uma excelente casa de madeira bem pintada, de ótima aparência.  
                            Não havia ninguém no momento.
                            Atrevi-me a espiar pela janela aberta, na tarde quente de verão. Tive um bom tempo para observar e de ver um fogão a gás, novo, um aparelho de televisão sobre uma cômoda, além de uma bela mesa revestida de um laminado de “fórmica” com um conjunto de cadeiras do mesmo padrão, um sofá mais novo que o meu. Não seria esta criatura que estaria absolutamente precisando de mantimentos básicos.
                            Retornei tão decepcionado, a ponto de sentir raiva por ter sido quebrada minha fantasia de bom samaritano, frustrando a perspectiva, com esta caridade ocasional, de aplacar os demônios residentes em meus remorsos acumulados,
                            Dirigi devagar pelo caminho de volta, remoendo idéias, algumas absurdas, como a de Deus estar recusando minha tentativa de barganha com Ele. Em compensação ganhando tempo de ponderar.
                            Haveria por certo, nesta cidade tão carente de empregos, outros bem mais necessitados. Fiz uma prece silenciosa e pedi humildemente a Deus que me iluminasse e apontasse um caminho qualquer. Virei à direita em uma esquina desconhecida, ganhando uma ruela sem calçamento, em um bairro pobre.
                            Havia crianças brincando na rua.
                            Parei o vistoso carro e elas aproximaram-se entre tímidas e curiosas.
                            Perguntei a esmo, como quem lança uma sorte qualquer:
                            - Vocês sabem onde mora uma senhora bem  velhinha e doente, que é muito pobre?
                            Elas, com o entusiasmo pueril, queriam falar todas ao mesmo tempo e apontaram com alvoroço:
                            - É ali!
                            Estacionei em frente a uma casinha de madeira sem pintura e necessitando de reparos. Bati e fui recebido alegremente por uma mulher simples, de cabelos alourados trançados à nuca, à moda de certos evangélicos, clara, um pouco sardenta e de olhos muito azuis. Depois de cumprimentar, refiz a pergunta sobre uma certa velhinha doente, que eu nem sabia se existia realmente.
                            Com a inocência da criatura mais pura e ingênua que se pode encontrar, sem o menor traço de desconfiança, abriu-me a porta e me fez entrar.
                            Na pequena casa de poucas janelas, quase todas fechadas, debaixo do sol muito quente de dezembro, fazia muito calor.
                            Apresentou-me de pronto e para minha estupefação, a uma figura a quem ela se referiu ternamente como “A Mãe”.
                            Sobre uma cama pobre, de lençóis imaculadamente brancos,  estava estendida uma mulher muito idosa, completamente nua, recendendo suavemente a um perfume de bebê. Na verdade, soube pouco depois, era de talco de boa qualidade, que lhe passavam no corpo após o banho diário, para evitar as escaras que costumam atormentar os doentes acamados por muito tempo.
                            Quase vegetava. Não se movia, nem falava, mas, lúcida, me sorriu como um anjo.
                            Dirigi-lhe algumas palavras de ternura e simpatia, dessas que mesmo simples, saem com muita dificuldade.
                            O que era sala e cozinha ao mesmo tempo, tinha a um canto, um fogão de lenha açoriano, rústico e simples, apenas quatro pés de madeira tosca, formando uma mesa revestida de por uma camada de tijolos ligados com barro vermelho, amparando uma chapa de ferro, e sobre ela, alguns utensílios de alumínio, velhos, mas brilhando como prata. Suspensas por um barbante de algodão esticado um pouco acima do fogão e em forma de cantoneira, havia umas poucas lascas de carne gordurosa cortadas muito finas, da espessura de lâminas de papelão, que mais pareciam tristes peixinhos escalados secando num varal.
                             Deus! - eu estava ao mesmo tempo comovido e glorioso por ter achado a casa certa.
                            Fui dando trela à moça, fazendo com que ela que falasse à vontade, revelando detalhes, particularidades. Contou-me do “Mano”, que sofria de uma perturbação mental, sempre em tratamento para manter-se calmo. No entanto, era quem mantinha a família com a magra pensão da previdência social, pagava a mulher que dava o banho diário na “Mãe” e principalmente, as latas de talco, às quais, religiosamente, jamais deixava faltar.
                            Perguntei sobre outras coisas, ocupação, trabalho, comida.
                            Ela falava-me da mãe, da doença, da pobreza, das necessidades, mas também de carinho e deixava sem querer, passar traços de invejável grandiosidade.
                            Em dado momento, confessou:
                            - Hoje eu disse assim ao mano: Será que este ano a gente não vai comer uma galinha? Sem galinha, nem parece natal.
                            Silenciou um instante, fitando o vazio com o olhar perdido e no rosto um sorriso vago, sonhando, pensei, como se imaginasse uma mesa cheia de comida.
                            - Mano então me respondeu - continuou ela, mostrando-me um punhado de pequenas batatas - “Aquela carne que a gente já tem, com as batatas que ganhamos da vizinha, mais Jesus, é Natal!”
                            Esta  eloqüente lição de fé simples e pura atingiu-me com força.
                            Fui tomado pela emoção, a querer provocar-me  espasmos de choro, mas consegui controlar-me. Tive ímpetos de distribuir logo as compras, mas me contive, para salvar um segundo propósito que me aflorava. Foi com o coração partido, pois, que me despedi delas, sem dar-lhes nada. Mesmo assim, a moça me acenou sorrindo.
                            Tomei o carro e vim  direto para casa, onde relatei tudo à minha esposa. Logo em seguida, acompanhados dos nossos filhos, um menino de sete anos, uma menina de cinco e uma outra de apenas dois, retornamos à casinha.
                            Deixei-os entrar primeiro.
                            Diante das lindas crianças a recepção foi festiva, com carinhos, elogios e admiração.
                            Os pequenos, a princípio, olhavam entre curiosos e desconfiados. Depois, surpresos e impressionados. Estavam calados, pensativos, desconcertados e impotentes ante algo que eles não conheciam até então.
                            A experiência pela qual as crianças, que desperdiçavam diariamente tanta comida nas sobras de seus pratos, afinal, estavam a passar ante a visão da dignidade na extrema pobreza, principalmente da doçura da velha senhora, foi comovente e grandiosa.
                            Mas, os olhares das crianças, como que suplicando que eu fizesse algo, que elas mesmas não podiam fazer, cortaram-me o coração e fizeram-me sentir um imenso orgulho delas, um presente que guardei sempre comigo. Por outro lado, se por algum momento passou por minha cabeça dar uma lição aos meus filhos, esta tinha sido completa.
                            Como que respondendo às suas súplicas silenciosas, abri o bagageiro do carro e deixei que os pequenos descobrissem, eufóricos, que podiam entregar todos aqueles presentes.
                            Se uns recebiam extasiados aquela feliz surpresa, de sacos, caixas e latas, mais felizes estavam as crianças, que queriam carregar tudo ao mesmo tempo, às vezes tropeçando e nem podendo sustentar os pacotes mais pesados.                
                            Mo meio dos risos, também choramos juntos aquele choro silencioso e manso, quente e poderoso que limpa a alma e cura todas as mazelas.
                            A galinha - engraçado - foi o brinde mais festejado.
                            Hoje estes meus filhos, passados tantos anos, já estão formados e bem encaminhados na vida, mas penso que nunca mais esqueceram aquele natal, nem o sábio e eterno ensinamento que “Mano” nos deixara:
                            - Mesmo que sejam apenas restos de carne e algumas batatas, mais Jesus, é natal!
                            Ou quem sabe, assim:
                            -  Qualquer coisa que você tiver, só é natal, com Jesus!
                           


3 comentários:

Anônimo disse...

Fico maravilhada com a ternura, o respeito e carinho que encontramos em casas de gente que, dadas às condições difíceis, poderia manifestar o contrário. Com certeza aquela mulher idosa e despida estava materialmente frágil e como Jesus, em circunstâncias de risco socialmente. Parabéns por esta narrativa, Márcio! O bom é que somos capazes de voltar a experimentar o jeito de enxergar ao modo de crianças. Olhar o mundo com a capacidade de (re)aprender e de compartilhar, eis o sentido do natal.Abraço da Fatima

Anônimo disse...

Fico maravilhada com a ternura, o respeito e carinho que encontramos em casas de gente que, dadas às condições difíceis, poderia manifestar o contrário. Com certeza aquela mulher idosa e despida estava materialmente frágil e como Jesus, em circunstâncias de risco socialmente. Parabéns por esta narrativa, Márcio! O bom é que somos capazes de voltar a experimentar o jeito de enxergar ao modo de crianças. Olhar o mundo com a capacidade de (re)aprender e de compartilhar, eis o sentido do natal.Abraço da Fatima.

J.Machado disse...

Lindo, lindo, lindo!
Tenho certeza que o gesto foi bom pra todos os personagens, reais ou não, principalmente para as crianças. O episódio, com certeza foi significativo para a valorização da vida!