segunda-feira, 15 de novembro de 2010

PÃO POR DEUS

                                                         Márcio José Rodrigues



 
Difíceis aqueles tempos nos campos da Madre e nos arredores da lagoa do Camacho.
Tropas imperiais ameaçavam os farrapos do General Canabarro, em retirada após a fragorosa derrota na heróica batalha naval na Barra da Laguna naquele 15 de novembro de 1839. A esquadra de Mariath impingira uma implacável derrocada à pequena frota farroupilha. O lendário Giuseppe Garibaldi perdera muitos amigos naquele local fatídico, mas nada fora tão dramático como a morte do inseparável João Grande, cortado ao meio com um certeiro tiro de canhão da poderosa artilharia da fragata " Bela Americana".
Na companhia de Anita, a quem levaria para sempre ligada ao seu próprio destino, cavalgava cabisbaixo. Por ele, ficariam nas cercanias para tentar a retomada da cidade, idéia não comungada pelo General, que pretendia um retorno rápido ao Rio Grande do Sul.
A tropa em andrajos seguia melancólica, um penoso caminho só suportado por heróis.
Acossados e sem mantimentos, com o quase nada de armas e munições que lhes restara, deixavam para trás o sonho efêmero de uma pátria livre em terras da província de Santa Catarina.
A romântica República Juliana não durara mais que uma quimera.
Embora fosse quase verão, já em novembro, o vento frio soprava rigoroso, do sul e açoitava sem piedade os corpos daqueles homens cansados e seminus, atormentados pela fome e pela melancolia. Um pouco à retaguarda, alguns cavaleiros solitários e esparsos, experientes e ligeiros, cobriam a retirada e marcavam o limite seguro entre os piquetes imperiais e os retirantes, observando os movimentos do inimigo.

Um guasca chamado Diogo, homem curtido na dura lida da estância e mais ainda pelas agru-ras da guerra, contornava uma duna alta não longe da praia quando, num repente, avistou a pouca distância um infante imperial desgarrado do seu grupo. Separava-os apenas um curto galope atravessando uma sanga de água estagnada deixada pelas chuvas de dias atrás, mas não tão perto para um arremesso de lança.
O soldado não parecia mais que um guri e pelo aspecto novo da farda azul, devia ser um desses recrutas sem posses que o exército arregimentava e mandava para o combate, sem muito treina-mento.
Ao deparar com a imagem repentina do cavaleiro, o rapaz assustado e só, sente um tremor percorrer-lhe toda a espinha e o coração disparar. Tão logo se refaz da primeira impressão de espanto, leva incontinenti a mão ao cão do fuzil e daí, quem sabe, dar voz de prisão ou mesmo atirar no desconhecido.
Mas, o inexperiente recruta não tinha vivência para avaliar o que poderiam juntos, aquele homem e seu cavalo. Numa fração de segundo, como se homem e animal fossem um só, o farrapo precipitou o corpo para o flanco escondendo-o totalmente da mira e já apontando a aguçada lança para o ataque, sob o pescoço da montaria. Rápido em sua reação, o magnífico e treinado corcel, ao mesmo tempo, arrancou impetuoso e arremeteu contra o jovem atropelando-o com uma violência inimaginável, prostrando-o atordoado ao chão.
Quando se recompôs e tentou levantar-se, era tarde demais. O gaúcho de pé à sua frente já lhe tinha a ponta afiada da lança alojada abaixo do queixo comprimindo-lhe a garganta. Com o mínimo esforço ele o transpassaria.
O pobre infante reconheceu sua condição de inferioridade e anteviu seu triste fim. Mais que medo, a tristeza e a decepção de acabar sua vida daquela forma humilhante, produzia-lhe uma repen-tina secura e um desagradável gosto na boca.
Não pediu clemência. Apenas elevou devagar a mão, mostrando a palma, como que pedindo um momento de vida.
Sob o olhar atento e os sentidos ainda mais aguçados do cavaleiro, retirou de dentro do casaco uma folha de papel e a apertou contra o peito.
Pensando tratar-se de uma importante mensagem, o farroupilha tomou-o num gesto rápido.
À noite no acampamento achegou-se à barraca dos oficiais.
- Comandante, o que tem escrito neste papel?
Garibaldi aproximou-o do nariz e aspirou, longa e suavemente, resquícios de um delicado perfume. Achegou-se mais à luz do lampião e leu o que nele estava escrito, com letras arredondadas letras de mulher:

“Ao meu estimado Diogo
Que parte nessa jornada
Pão-por-Deus manda pedir
Que volte para sua amada."

Calou por algum tempo como se o singelo poema ou sua fragrância o tivesse remetido a outro lugar, que não aquele desconfortável acampamento do Camacho.
Finalmente, dirigiu-se ao ansioso homem que se mantinha ereto, à sua frente:
- Diogo, caro mio, quem escreveu estes versos para ti? Isto é um " Pão por Deus", uma declaração que as moças açorianas costumam enviar aos seus amados. Eu também já recebi um desses, da minha Anita, disse sorrindo. Depois comentou mais sério:
- Que coisa esta guerra, caro mio! Então tu deixaste um "amore" na República Juliana?
- Não, meu comandante! Este papel eu tirei de um soldado imperial.
- Mas que destino! O imperial tinha o mesmo nome que tu!
- Comandante, pode ler de novo o escrito?
Garibaldi sorriu e o leu de novo pausadamente.
- Gracias, comandante!
O italiano estendeu-lhe o papel.
Diogo apanhou-o, tocou de leve a aba do chapéu e apenas balbuciou:
- Com sua licença!
Depois do leve gesto de cabeça do oficial, retirou-se para longe das fogueiras e ganhou a escuridão da noite. Fazia muito frio e o vento soprava forte. O céu estrelado, limpo, de um fundo azul quase negro destacava com forte contraste o brilho das estrelas. As "Boleadeiras" (Três Marias) em linha, lembravam Negrinho do Pastoreio apealando cavalos na estância de Deus.
Olhou na direção do sul, como que buscando o lugar de suas lembranças. No alto, o Cruzeiro refulgia soberano e como sua lança de combate, apontava para a querência onde também deixara a chorar sua chinoca...
Tentou lembrar os versos e eles vieram aos pedaços.
Estimado Diogo...
Pão por Deus...
Que volte para sua amada.
... que não sabia ler nem escrever, mas também lhe dizia coisas lindas assim, quando ele se mirava no fundo dos seus olhos escuros.
A solidão apertou ainda mais uma ansiedade ao mesmo tempo sentida e doce em seu coração. Naquele espaço majestoso e vasto, um poeta repentinamente acordado, que morava em seu peito rústico de campeiro, arrancou-lhe um pensamento. Não haveria momento, nem mais nenhum outro lugar no mundo, tão lindo e tão grandioso, para dizer alguma coisa ao Grande Estancieiro do Céu.
E assim, num gesto de reverência, posição perfilada de soldado, inclinou a cabeça e apertou o chapéu contra o peito, dirigindo-lhe uma prece entrecortada pela emoção:
- Patrão do Céu, hoje eu te dou gracias por não ter tirado a vida do soldado imperial.
Pois entonce, deixa que ele volte para sua amada!
E que eu também possa voltar para a minha!
Com o papel entre os dedos, pensou em levar consigo aqueles versos ao Rio Grande, mas havia decidido que não lhe pertenciam. Ergueu a mão sobre a cabeça e soltou-o na escuridão para que o vento o transportasse na direção da Laguna e lá encontrasse seu verdadeiro dono.

(Foto de Luis Santana)

Um comentário:

Anônimo disse...

Um bonito conto onde Márcio criou sua ficção nos ingredientes da cultura sulina. Uma pausa no meio da batalha onde vence o amor e a fé.Prosa poética da nossa açorianidade cerzida com os farrapos da nossa história.
Parabéns! Abraço da Fatima.